sábado, 10 de julho de 2010

Neruda - Ode ao Dicionário




PABLO NERUDA


ODE AO DICIONÁRIO

Lombo de boi, pesado
carregador, sistemático
livro espesso:
quando jovem
te ignorei, me vestiu
a suficiência
e me acreditei completo,
e estufado tal um
melancólico sapo
recitei: “Recebo
as palavras
diretamente
do Sinai bramante.
Reduzirei
as formas à alquimia.
Sou um mago.”

O grande mago se calava.

O Dicionário,
velho e pesado, com seu jaquetão
de couro desgastado,
se aquietou silencioso
sem mostrar suas provetas.

Porém um dia,
depois de havê-lo usado
e desusado,
depois
de declará-lo
inútil e anacrônico camelo,
quando em longos meses, sem protesto,
serviu-me de poltrona
e de almofada,
rebelou-se e se plantando
em minha porta
cresceu, moveu suas folhas
e seus ninhos,
moveu a elevação da sua folhagem:
árvore
era,
natural,
generoso
manzano, manzanar ou manzanero,
e as palavras
brilharam em sua copa inesgotável,
opacas ou sonoras,
fecundas nos ramos da linguagem,
carregadas de verdade e de sonho.

Aparto uma
só das
suas
páginas:
Caporal
Capuchón

que maravilha
pronunciar estas sílabas
com fôlego,
e mais abaixo
Capsula
oca, esperando azeite ou ambrosia,
e junto delas
Captura Capucete Capuchina
Capracio Captatorio

palavras
que deslizam como uvas suaves
ou que à luz estalam
como germes cegos que esperaram
nas adegas do vocabulário
e vivem outra vez e dão vida:
uma vez mais o coração as queima.

Dicionário, não és
tumba, sepulcro, caixão,
túmulo, mausoléu,
és senão preservação,
fogo escondido,
plantação de rubis,
perpetuação viva
da essência,
celeiro do idioma.
E é belo
recolher em tuas filas
a palavra
de estirpe,
a severa
e esquecida
sentença,
filha da Espanha,
endurecida
como grade de arado,
fixa no seu limite
de antiquada ferramenta,
preservada
com sua beleza exata
e sua dureza de medalha.
Ou a outra
palavra
que ali vimos perdida
entre linhas
e que de pronto
se fez saborosa e lisa na nossa boca
como uma amêndoa
ou terna como um figo.

Dicionário, uma mão
de tuas mil mãos, uma
de tuas mil esmeraldas,
uma

gota
de tuas vertentes virginais,
um grão
de
teus
magnânimos celeiros
no momento
justo
aos meus lábios conduz,
ao fio da minha pena,
ao meu tinteiro.
De tua espessa e sonora
profundidade de selva,
dá-me,
quando o necessite,
um só trinado, o luxo
de uma abelha,
um fragmento caído
de tua antiga madeira perfumada
por uma eternidade de jasmineiros,
uma
sílaba,
um tremor, um som,
uma semente:
de terra sou e com palavras canto.



Oda al Diccionario

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in: Nuevas Odas Elementales (1956)

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